RASCUNHOS e ESTUDO: O Mimico
O Mímico (parte 1) // Soubera daquilo quando certa manhã, atravessando à rua principal atrelado as mãos do pai viu gargalhando em silêncio absoluto o cidadão alvinegro. Derretia a maquiagem, mas não perdia o prumo. Contava sem voz os trejeitos dos outros como se até íntimo fosse. Não perdia o sorriso, e não falava. Nada, nem à toa. Mesmo os apressados se rendiam com suas sobras de moedas, sem entender direito o que tudo aquilo significava, ou mesmo o que deveria... Um contraponto de paz, de sonho, em meio ao bisonho engarrafamento de carne viva e desumana circulante. Contorcia o maxilar, provocava rugas, aproveitava o ensejo de um bocejo. E o velho, sabedor dos olhinhos de criança brilhando, explicava professoral, a cultura francesa e o palhaço mudo que gesticulava o contorno de tudo solfejando sem ruídos o que torneava a calçada, os gestos e passantes. Mímica! Finalmente! Este era nome da nobre arte... Se soubesse a profundidade que se estendia por trás daquele acaso de percepção, um sujeito bem sucedido com medo de pobreza jamais declamaria aquela história. E era bom nisso! Particular articulação... Mas fora prometido, e era tradição familiar. A pura linhagem dos mais renomados médicos de toda uma região; deveras importante. Afora um primo distante ortopedista, era quase uma maçonaria de cirurgiões. Reencarnação de cangaceiro, que retornava. Paga de outra vida. E por ela a dedicação e o tempo integral... Salvar o próximo, objetivando a vida. O princípio católico, status. Nada que diminuísse a profissão. E entre os livros espessos dos aspirantes a "profissão medical", dobrava as horas para freqüentar cursos e percursos. Em segredo, na calada. Quieto como jacaré que olha. Percebendo a ponta dos dedos, mãos, pés. Se rendendo a anatomia acompanhada de outra forma, dimensionada muitas vezes, a explicação científica dos membros. Viu o maior mímico de todos os tempos no Municipal do Rio de Janeiro quase em segredo. E chorou com a partida dele. Precisou estar triste, estranhamente triste, para poder novamente sorrir. E controlar músculos, impressionar professores, passar em provas, se dividir num só. Identificava-se por vezes com cadáveres de aulas de dissecação. Tudo o que pudesse insinuar uma notícia de expressão eram captados com antenas de inseto. Paralelamente, era formatado o homem prometido, mestre na manipulação das ferramentas delicadas, um pajé da alopatia moderna. Dono da cura, de um pomposo diploma, segundo testemunhas oculares que trajavam uniforme branco, exímio cortador de peles, tecidos e órgãos. Extirpava a descrença e quase não falhava. Orgulho nacional de uma sucessão esperada. Enfim! Haveria uma continuação...
O Mímico //
E a vida aos poucos tomava seu rumo.Para ele, é claro! Iam os meses e suas previsibilidades... Vez por outra ainda exercitava sua capacidade de comunicação muda confabulando silencioso com o espelho da sala. Os dias eram quentes, as noites nem tanto. Sonhava acordado poder voltar a Paris e atualizar talvez seus conhecimentos sobre a nobre arte do palhaço mudo. Mas era o cirurgião do lugar. Quase um cargo político. Por vezes interferiu com destreza em pendengas da prefeitura e falação de partidários. Achava o ó! Era de uma paz branca, melancólica... Falava manso, compassado, articulando o menos que pudesse... Era importante não transparecer seus conhecimentos que nada tinham a ver com a profissão... Uma mão única de sobrevivência. Tudo muito calmo levantando poeira de lugar sem asfalto. Simples assim! Muitos problemas respiratórios, algumas poucas cirurgias de apêndice e outras ocasionais extrações. Muita orientação e conversa fiada para o tempo não passar despercebido. Enquanto isso a única estação de rádio anunciava a meteorologia... Chuva!... Muita água de nuvem seguia em direção aos montes. Assim chamavam os que acordavam com a paisagem rochosa do outro lado da margem turva... Uma cidade pequena, um hospital menor ainda, um rio que corre e uma tempestade em movimento... E ainda assim pensava em Paris...
O Mímico parte 3 // Mas não queria. No fundo sabia de si. Era um artista! Médicos fazem arte e colhem aplausos. Mas não seriam aqueles há enaltecer os anos e recordar a existência. Lamentava não ter investido nessa idéia de palcos e picadeiros, e calçadas e toda sorte de público! Iria Contrariar as expectativas da família. Mas... O que são os laços de sangue! Deus pai! Desenrolam e embolam todo o carretel das possibilidades. Quase sempre a preocupação desmedida com um futuro já resolvido, custeado, em nome da prole, torna-se o passaporte de teorias psicanalíticas e lugar garantido no divã. Tinha a plena certeza, e assinava embaixo. Prefeririam um maluco de branco, aos movimentos silenciosos, dignos de poucos. Afinal, se talento fosse coisa à toa, seria produto de supermercado ou importadoras... E arte ainda era, ali, sorte de quem não caminha... Pensava na cidade pequena, que tinha rio, pracinha e coreto. Quermesse e festa para santo padroeiro... E a boca muda, sem sorriso amarelo, tremia ao gosto da primeira lágrima salgada daquele dia. E olha que foram muitas. Talvez mais água que o rio pequeno da cidade menor ainda...
O Mímico parte 4 // Mas era difícil pensar que poderia ser, ou até, ter sido outra coisa. As horas despendidas, todas as madrugadas inteiras contornando pilhas de livros e toda sorte de informações sobre o assunto. Parecia tarde demais para uma reviravolta profissional. Algo que transformasse tudo. Que mudasse em definitivo o rumo dos acontecimentos. E pensava no pai e sua pompa, no orgulho matriarcal que tingia os olhos de prata... Do exemplo que se tornara para outros de mesmo sobrenome. Tudo o que viesse a representar não estancaria a dor de não poder calar a voz para gesticular o tempo, suas andanças. No fundo era um palhaço que não falava. O verbo silencioso do caminho de cada um... E no caso do rapaz, viver a existência escolhida. Pronto! Começara a chorar novamente... E só pararia ao raiar do dia novo. O sol não nasceria à toa. Seria um dia melhor... Mesmo que de branco fosse. Seria melhor... // Continua
O Mímico parte 5 // Nublado fora o dia da partida... E a cidade , bem se sabia, era mesmo pequenina demais. Se bonita? Não posso creditar tanto entusiasmo. Mas sua gente simples, de pensamento estreito, sabia com rigidez manter a liturgia do dia a dia... Tinha igreja grande com praça e coreto e bicicleta voando feito passarinho porque criança não tem hora e o sino avisava. Por isso pulso também não tinha relógio. Era casa e pipa a perder de vista e um perfume de mato constantemente sentido por um corredor de vento que não sossegava nunca... E as margens do rio grande o único hospital da região... Arrumado sim! Organizado era pelas freirinhas de Santa Rita. Irmãs que há décadas se entregavam ao próximo. Confortavam doentes na última cidade do lugar mais distante que já estivera... Sem dúvida um diferencial existia naquele lugar! Além de profissionais escolhidos em concursos e muito bem remunerados, a palavra de Deus praticada, e o sorriso de marfim machucado no semblante daquelas senhorinhas vendiam a boa imagem e complementavam a função daqueles renomados doutores... Mas era lindo vê-las sorrir! Há tempos perderam qualquer dúvida sobre o sentido da profissão comum. Ou mesmo adereços de responsabilidade. Era a palavra sagrada. As senhoras de Nossa Senhora! E o sentido de vidas inteiras, colecionando uníssonas orações que repetidas adentravam todas as manhãs... //Continua
O Mímico parte 6 // E a vida aos poucos tomava seu rumo. Para ele, é claro! Iam os meses e suas previsibilidades... Vez por outra ainda exercitava sua capacidade de comunicação muda confabulando silencioso com o espelho da sala. Os dias eram quentes, as noites nem tanto... Sonhava acordado poder voltar a Paris... A nobre arte do palhaço mudo... Mas era o cirurgião do lugar! Quase um cargo político. Por vezes interferiu com destreza em pendengas da prefeitura e falação de partidários. Achava o ó! Era de uma paz branca, melancólica... Falava manso, compassado, articulando o menos que pudesse... Era importante não transparecer seus conhecimentos que nada tinham a ver com a profissão... Uma mão única de sobrevivência. Tudo era muito calmo levantando poeira de lugar sem asfalto. Simples assim! Já havia dito: muitos problemas respiratórios, algumas poucas cirurgias de apêndice e outras ocasionais extrações. Muita orientação e conversa fiada para o tempo não passar despercebido. Enquanto isso a única estação de rádio anunciava a meteorologia... Chuva!... Muita água de nuvem seguia em direção aos montes. Assim chamavam os que acordavam com a paisagem de arenito do outro lado da margem turva... Uma cidade pequena, um hospital menor ainda, um rio que corre e uma tempestade em movimento... E ainda assim pensava em Paris... // continua
O Mímico parte 8 // Contavam os mais velhos que há setenta anos atrás o rio transbordou. Praticamente todo o vilarejo ficara debaixo da água. O hospital construído em outro plano não fora atingido, mas verdade também é que todo mundo correra montanha acima porque parecia até que Deus não queria nada em pé... De lá pra cá se acirraram as responsabilidades com questões climáticas e demais temas adjacentes. Era importante compreender e não deixar no esquecimento as histórias daquele dia. Cada parente deveria lembrar e passar adiante a notícia de que chegaria muita chuva... Com gosto molhado de lembrança velha... De passado que não se esquece... E retornava ao ponto inicial... Iria para a França quando passasse a turbulência... Agora estava finalmente decidido e pronto. Quem não gasta junta e ali consumiria o tempo e alguma boa dose se bebesse... Somente... // Continua
O Mímico parte 9 // Começava então o furduncio. A equipe da manutenção largando graxa de elevadores no chão, recepcionistas e faxineiras ululando feito pernilongo e todo tipo de funcionário que "habita" um hospital e não é doutor. O único guarda de plantão, roliço feito um melão, comunicava as autoridades da cidade vizinha que era o fim do mundo. Ninguém optava por aguardar a notícia divulgada! Restariam por fim médicos e enfermeiros... As lembranças, mesmo que distantes, inundavam os mais remotos sonhos ruins. Como separar o passado de um futuro que estava prestes a acontecer? E adianto senhores. Melhor assim! Ainda não tinha conhecimento o protagonista da nossa história sobre o porquê da sua presença naquele lugar. Outros rumos que num rompante aparecem... Soubesse antes e o norte era outro! Imprevisível seria dimensionar o que estava por vir. Ao longe o céu acinzentava o resto e só se via a imagem ventada da tarde acabando. Deus pai, dizia um... Tenha piedade... Respondiam todos. // Continua